terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Os Manos e as Minas: 2) Meu amigo Antônio Carlos e a construção de Chico Buarque

Quando comecei o então colegial (hoje ensino médio), acabei, por afinidade, aproximando-me de um rapaz que era uma figura. Nem muito alto nem muito baixo, magro, dono de uma escandalosa gargalhada, era a simpatia em pessoa. E tinha um cabelo que insistia em crescer pros lados, o que o fazia se parecer com uma espécie de Bozo moreno. Não era exatamente bonito, mas tinha uma surreal cantada que sempre pegava as pretendidas no contrapé. Como não tinha um pingo de vergonha na cara, onde estivesse, se lhe interessasse alguma garota, aproximava-se dela com a maior naturalidade e soltava a pérola: “Oi, posso te conhecer?” Dizia isso com um sorriso de orelha a orelha. Tal gesto à queima-roupa deixava a garota, incrédula, sem ação pra dar uma negativa, e era justamente no vácuo desse momento que ele aproveitava pra lançar sua metralhadora de absurdos e fazer que ela se acabasse de rir. Simples assim. Em cinco minutos já tinha conseguido da desavisada um sim pra um cinema ou pelo menos lhe arrancara o número do telefone. Outro talento seu era o xadrez. Foi com ele que aprendi a jogar (mal). E até hoje não o venci mais que duas vezes! Em compensação, poucas vezes na vida conheci alguém tão destrambelhado no trato com a bola. Tê-lo no time era certeza de vitória (do adversário). Ah, o nome do moço: Antônio Carlos, pra turma, o Toninho.

Pois bem, no parágrafo acima falei sobre afinidade. No nosso caso, compartilhávamos o amor à literatura, ao cinema, à música, às garotas e aos botecos (não exatamente nessa ordem). Também nutríamos algumas rivalidades: eu, Palmeiras, ele, Corinthians; eu, Chico, ele, Caetano; eu, Engenheiros do Hawaii, ele, Legião Urbana; eu, Robert De Niro, ele, Dustin Hoffman, e por aí ia. Certa feita, lembro que caminhávamos sem pressa, entretidos pelo papo e, sem que nos déssemos conta, passamos pelo meio de uma favela. Até aí, tudo bem, afinal, morávamos perto de muitas. O problema foi que eu estava com uma camisa do Palmeiras e ele com uma do Corinthians! Quando a galera de um bar notou, tivemos que ser maratonistas pra escapar de sabe-se lá o quê. Em outra oportunidade, já amigos inseparáveis, ele me convidou pra ir a sua casa. E lá fui eu, sem saber que aquele dia iria mudar minha vida. Toninho me mostrou um arsenal de LPs de dar inveja a colecionador. Minha discoteca não era pequena, mas a dele primava pelo ecletismo. Ali havia de tudo: rock, pop, samba, choro, MPB, trilha de cinema, música cafona, bossa nova, enfim, ao gosto do freguês. Do nacional ao internacional, do novo ao velho; pra um garoto da minha idade, era de cair o queixo.

Mostrava-me ele um pouco de cada coisa, até que chegou num LP de Chico Buarque. Aliás, citei o moço de olhos claros acima entre nossas rivalidades, mas o amor por sua obra nasceu justamente nesse dia. Todo mundo tem seu “antes e depois de”. Em meu caso, considero minha vida dividida em antes e depois de Chico Buarque. Mais especificamente, antes e depois de Construção. Pois foi justamente esta a canção que Toninho pôs pra tocar sem nem me dar tempo de me preparar psicologicamente. Aquilo foi como levar um soco na boca do estômago dado por Mike Tyson. Cheguei a ver estrelas. Quando a canção acabou, fiquei num estado próximo ao catatônico. Levei alguns minutos pra voltar a mim e só consegui dizer: “Fui enganado!” Até então, meu gosto musical resumia-se ao pop de língua inglesa, ao rock nacional e a... Roberto Carlos. Mas a respeito do Rei tratarei noutra oportunidade. Voltando: o massacre continuou. Então vieram Cotidiano, Valsinha, Deus lhe Pague, Minha História, Desalento, e por aí foi. Ainda disse: “Caramba! Fantástica essa coletânea!” Foi a deixa que Toninho esperava pra dar o golpe de misericórdia: “Não é uma coletânea, não senhor. Ele lançou tudo isso num ano só.” Fui conferir: 1971. O ano em que nasci. Assim, o acontecimento ainda se revestia de uma grata simbologia. Saí dali correndo e, na primeira loja de discos que encontrei, comprei o abençoado disco. Depois, outro e mais outro, e a cada disco era um novo arrebatamento. Só sosseguei quando adquiri praticamente a discografia toda do moço.

Nessa cadeia, Toninho me apresentou Chico e este me abriu as portas da música brasileira. Quando finalmente a buarqueana febre arrefeceu, vieram Gil, Caetano, Vinicius, Cartola, Nelson Cavaquinho e mais uma interminável seleção de estrelas dessa constelação musical. Dessa forma, ultrapassei mil LPs e dois mil CDs. Por causa disso, um belo dia, meio que de farra, eu e Toninho decidimos celebrar um fim de ano com uma festa regada a cerveja, salgadinhos (era o que o bolso permitia) e música. Batizamos o encontro de “retrospectiva”, pois Toninho sempre foi aficionado pelo programa de mesmo nome que a Globo passa anualmente até hoje. Cada um de nós preparou uma espécie de ranking das canções mais ouvidas do ano e, nesse já “folclórico” dia, pusemo-las pra tocar. O resultado superou nossas expectativas, e resolvemos repetir a dose no ano seguinte. Resumo da ópera: a brincadeira ficou séria e, tirantes um ou dois anos, continuamos nos encontrando anualmente pra celebrar a amizade e nosso amor à música. E, como a retrospectiva também nos ficou íntima, hoje a chamamos simplesmente de retrô.

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Foi Chico Buarque também o responsável por eu ter me iniciado nessa brincadeira (séria) de compor. Era dezembro e passava na Bandeirantes um especial de Chico de seu então recém-lançado Paratodos. Assistia-lhe eu quando, após Chico ter cantado Ela Desatinou com Daniela Mercury, brotou-me, inesperadamente, uma melodia já com letra. Na mesma noite fiz outra. Encontrei um piano de brinquedo que ganhara lá se iam anos e, nele, comecei a tocar com o dedo indicador as melodias que compusera. Como não soubesse escrever música (nem tivesse à mão um gravador), inventei um complicado código pra não esquecer as melodias. Em poucos meses já tinha bem umas 20 canções. Canções essas que, tempos depois, desconsiderei de minha obra, pois, além de serem muito ruins, eram repletas de pretensão. Mas o fraco resultado não tirou a importância daquela noite, pois foi por meio desse exercício de compor que futuramente eu chegaria a melhores resultados.

No ano seguinte, comprei dois ingressos pra ver no antigo Palace o show Paratodos. Na última hora, por uma dessas coisas inexplicáveis que passam pela cabeça de uma mulher, que nem o mais sábio dos homens consegue entender, a garota que eu namorava desistiu de ir. Não me fiz de rogado. Em débito com Toninho por este ter me apresentado a obra de Chico, devolvi-lhe a gentileza, levando-o ao show. Foi também com Toninho que vi o último show da Legião Urbana em Sampa. Mas essa é outra história.


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Tive (e tenho) bons amigos. Alguns sumiram, outros morreram, boa parte deles continuo encontrando esporadicamente, mas o entranhamento que atingiu minha amizade com Toninho foi em minha vida um acontecimento único. A ele devo muito, e sou agradecido ao destino por ter posto em meu caminho um sujeito de tão grande coração e boa-praça como poucos. Hoje, muitos anos (e quilos) depois, ele é um quarentão, mas continua o mesmo garoto sonhador de sempre e não se cansa de compartilhar tais sonhos com os que têm o privilégio de tê-lo em seu convívio. Ele me lembra a personagem de James Stewart no filme A Felicidade Não Se Compra (It's A Wonderful Life), de Frank Capra. Quem viu o filme entenderá por quê. Toninho já mudou a vida de muitos a seu redor. Indiretamente, tornou-me compositor, levou um rapaz que carecia de rumo a cursar História na USP, mostrou alguns choros a uns adolescentes seus vizinhos que por causa disso se tornaram músicos, enfim, são essas e outras atitudes que o tornam único. O irônico da história é que ele mesmo, até bem pouco tempo, não tinha um rumo definido na vida. Agora cursa Letras numa faculdade federal, e tenho certeza de que ainda será um dos melhores professores deste país (que carece tanto deles), pois já o é antes do diploma.

Há tempos, vinha querendo escrever este relato, mas sempre o acabava adiando. Por fim, hoje criei coragem, e as palavras me escapuliram num jorro só. São muitos anos; muitas histórias; alguns desvarios; porres homéricos (e, por que não?, quixotescos); algumas situações constrangedoras, outras cômicas; saias justas; brigas; reatamentos (já rolou até agressão física!); enfim, altas presepadas! Qualquer dia conto uma ou outra de nossas peripécias. Ah, adianto uma: certa noite, há uns 20 anos, caminhando pelas ruas de São Paulo, bêbados de fazer inveja, cantávamos Meu Bem Querer, de Djavan, a plenos pulmões, quando algumas janelas de um prédio se abriram e... não é que fomos aplaudidos? Acredite se quiser! Bem, abandono este texto, como se fosse uma Valsa Brasileira, ou não o farei nunca. Por ora, deixo esta homenagem a Toninho, que é um mano da vida inteira, e a Chico Buarque, que é... Ah, o Chico é o Chico, né?


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6 comentários:

  1. Léo,
    Que texto maravilhosoooo. Comecei a ler como quem não quer nada,mentira,foi pq vi a capa de um LP do Chico,ai não parei mais e já vou ler novamente.

    By by
    Lucinda Prado

    PS: Morri de inveja de vocês dois.

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  2. Oi, Lucinda!

    Que bom que você gostou do texto. Ter amigos assim é ótimo, não?

    Mudando de assunto, amanhã retomo o que falta dos contos, ok?

    Beijos do
    Léo.

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  3. Léo,
    Obrigado pelo texto, estou espantado como você conseguiu fazer um ótimo resumo das nossas aventuras tão bem escrito na verdade me emocionei, obrigado meu amigo, meu irmão e vamos então escrever novas histórias ...

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  4. Salve, salve, malandragem! Antoniocarlos no pedaço!

    Bem-vindo a este espaço de memórias, opiniões, homenagens e música! E viva a retrô!

    Abração do
    Léo.

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  5. Amigo é coisa pra se guardar...

    Abraço.

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  6. ...Mesmo que o tempo e a distância digam "não"...

    Abraços do
    Léo.

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