terça-feira, 1 de abril de 2014

Crônicas Desclassificadas: 126) O Brasil não é pra principiantes ou A anticartilha

Está na moda falar mal do Brasil. E mais: está TÃO na moda, que até os brasileiros andam descascando a batata no que se refere aos mais variados assuntos tupiniquins. Dá a impressão de que estamos no fundo do poço. Claro, temos nossos problemas, como os há em toda parte, mas não vejo nosso momento como algo tão horrível que mereça, digamos, intervenção militar. Pelo contrário, nunc... ia começar pela frase favorita de Lula, mas melhor reformulá-la. Acredito, ao contrário, que vivemos um bom momento. Tanto é verdade, que pessoas têm ido às ruas fazer manifestações exigindo isso ou aquilo justamente porque agora, que já têm o básico, querem mais, o que, diga-se, é justíssimo. Afinal, se alguém não comia e agora come, não lhe deve ser negado o direito a comer caviar.

Resolvi escrever estas linhas porque fiquei horrorizado ao ler a tal da cartilha que a Fifa desenvolveu sobre o Brasil direcionada aos turistas que se aventurarem a visitar nossa "pequena" nação bananeira em junho próximo. Ora, ali os fifeiros conseguiram juntar todos os lugares-comuns no que se refere aos preconceitos sofridos por brasileiros desde sempre num único e ordinário discursinho panfletário que não passa de um categórico tiro no pé. Daí me perguntei: será que antes de escolherem o Brasil pra sediar a Copa esses respeitáveis senhores não estavam a par de nossas mazelas? Ou, se estavam, porque o escolheram? Terá sido porque as outras opções eram piores? O nome da malfadada cartilha era nada menos que Brasil para principiantes. Ao que eu sentencio: o Brasil, meus caros senhores, NÃO É PRA PRINCIPIANTES!

Creio que, com um pouco de estudo e dedicação, deva ser razoavelmente fácil tentar entender povos mais homogêneos, habitantes de algum país onde a etnia não possua tantos matizes, tantos tons que não os de cinza, como Taiwan ou Dinamarca. Mas um fulano que pretende, tendo um olhar estrangeiro, resumir o Brasil em dez tronchos tópicos, demonstra, mais do que ser dono de uma infeliz ideia já em si natimorta, possuir uma imbecilidade atroz. Um país onde (con)vivem – mais ou menos – pacificamente gente de praticamente todos os rincões do globo não pode ser tão facilmente resumido em uma lauda por quem vem aqui dar um rolezinho em Copacabana, fazer um passeio de barco pelo rio Amazonas ou tirar umas fotinhas no Masp

Não, senhores, aqui o buraco é mais embaixo. Não poucos, com o QI mais alto que o dos cartilheiros fifeiros, gastaram, não cartilhas, mas livros e mais livros com o assunto (Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro são só alguns deles), e, apesar de tão farto material de estudo (que esses cidadãos obviamente não leram), nem assim foi possível chegarmos a um denominador comum a respeito de quem somos. Nossas idiossincrasias (adoro essa palavra) são um tanto mais complexas do que imagina saber a vã filosofia estrangeira. A começar por nossa língua, tão rica e tão eternamente mutante, devido à mistura de ignorância e criatividade de nosso povo. Daí que sou obrigado a concordar com Arnaldo Antunes, quando canta que "somos o que somos: inclassificáveis".

Claro, não poucas vezes, neste mesmo espaço, critiquei impiedosamente certos problemas insolúveis do Brasil, mas uma coisa é nós, brasileiros, identificarmos e criticarmos algo fora de lugar, já coisa bem diferente é bico de fora fazer chiado tão desrespeitoso como o dessa cartilha – que, diga-se de passagem, já foi tirada do ar, tanta foi polêmica que gerou. Escrever algo baseado em generalizações só demonstra o nível de diálogo que há entre a Fifa e o Brasil. Duvido que se se tratasse da França ou dos Estados Unidos algo parecido aconteceria. E por quê? Aí volto ao primeiro parágrafo, quando digo que os próprios brasileiros estamos acostumados a descer a lenha no País e a propagar as generalidades presentes nessa cartilha. Que vai saber se não foi feita com a ajuda de algum brasuca traíra...

Mas enumeremos: 1) "Brasileiros são otimistas e nunca começam uma frase com a palavra 'não'." Cuma? Será que eu entendi direito? Olha a generalização aí. O pobre é mais propício a ser otimista, até porque não lhe sobra muito tempo pra depressõezinhas, mas o pessimismo anda à solta. 2) "A pontualidade não é uma ciência exata no Brasil." Diga isso aos milhões de trabalhadores que acordam antes do nascer do sol, enfrentam os mais precários meios de transporte e chegam sempre na hora a seus respectivos empregos. Até porque, se atrasassem, não permaneceriam ali por muito tempo. 3) "Os homens e mulheres brasileiros (...) falam com as mãos e não hesitam em tocar nas pessoas com quem estão conversando." Nem todos, mas e daí? Aspectos culturais devem ser respeitados. Os homens italianos se beijam, os chineses escarram na rua...

4) "Ficar pacientemente numa fila não está no DNA brasileiro." Discordo. Há sempre um ou outro folgado, mas acho até o contrário: o brasileiro está tão acostumado a filas, que nem reclama mais. 5) O item 5 é tosco demais. Diz que nas churrascarias as melhores carnes são servidas no final. Oras, eu frequento churrascarias e quando chego já vou logo pedindo picanha. Às vezes basta ter boca pra solucionar certos problemas. 6) "Nas ruas, os pedestres são ignorados e mesmo nas faixas os motoristas não param para eles voluntariamente." Poxa, acertaram um (rs). 7) O 7º item diz que, apesar de ser comum mulheres serem vistas com pouca roupa no Carnaval, nas praias ninguém faz topless. Isso é de um machismo ridículo. Sem falar que muitos desses marmanjos aportam por aqui pra fazer turismo sexual.

8) O 8º item fala sobre as maravilhas do açaí. Diz também que os jogadores de futebol o comem pra recuperar a energia. Ah, tá. Faltou dizer que os jogadores também ouvem bossa nova. 9) "Os turistas que tentarem se comunicar em espanhol no Brasil terão a sensação de estarem falando com as paredes." Baita mentira. o brasileiro, apesar de monoglota, é o povo que conheço com mais boa vontade de ajudar um turista (fora os ladrões, claro). 10) "A filosofia dos brasileiros na vida pode ser resumida com a seguinte frase: 'relaxa e aproveita'." Claro, as manifestações estão aí pra corroborar tal filosofia. Meu camarada Zeca Baleiro, em entrevista recente, foi enfático ao dizer que o Brasil é o melhor país do mundo pra se viver. Não conheço o mundo todo, mas tendo a concordar com ele. Só faltava o brasileiro se mexer um pouco pra mudar nosso sistema político e ensinar a esses coronéis que se perpetuam no poder que eles são nossos funcionários, não nossos patrões. 

O Brasil é favorito pra ganhar a Copa, mas bem que já era hora de ganharmos umas copinhas fora do gramado também, né não? Com um apigreidezinho na educação esse "melhor país do mundo" ficaria melhor ainda, produzindo Neymares em outras áreas.



10 comentários:

  1. Muito bom! Posso compartilhar no FB?

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  2. Vixe! A unknown sou euzinha, Gabi... rs.

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  3. Léo Nogueira:

    Absolutamente perfeito tudo o que vc fala nesse artigo, Tudo!!! Parabéns!!!
    Paulinho das frases

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  4. Respostas
    1. Hahaha! É uma crítica à Fifa, ao Brasil ou a mim, Cava? Ou muito pelo contrário? rsrs

      Beiju,
      Léo.

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    2. Ah, agora foi que caiu a ficha. rsrs

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  5. É uma paródia... de "Tristes Trópicos" do Claude Lévi-Strauss. Foi uma crítica, sim, à cartilha imbecil da fifa, com seus tristes tópicos. ;-) Seu texto está brilhante, com sempre.

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    1. Sorry, entendi depois. Efeito retardado (o efeito ou eu... sei lá... rs). Entendi a brincadeira com o Levi-Strauss, mas tinha pensado também que os tópicos que eu escolhia é que eram tristes. Cinco minutos depois caiu a ficha de que eram os tópicos da Fifa. Ai, neurônios... ai, neuroses... rs

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