segunda-feira, 28 de julho de 2014

Crônicas Desclassificadas: 139) As impertinências da Morte – parte 2

Não vão dizer que é ideia fixa. Sei que já escrevi sobre ela (aqui), mas... é que as pessoas continuam morrendo! Nem bem enterraram Plínio de Arruda Sampaio, lá veio a Pálida Dama levar João Ubaldo Ribeiro. E, não satisfeita, logo na sequência levou Rubem Alves e, sem descansar, Ariano Suassuna! Sem falar nos tantos mortos que estavam no avião que caiu na Ucrânia. Sem falar nos mais tantos mortos de Gaza. Sem falar no viaduto que caiu em Belo Horizonte. E sem falar num casal que foi eletrocutado dentro de seu carro no bairro do Tatuapé porque, do nada, um cabo elétrico inventou de arrebentar e lá foi ele lamber o dito veículo. Ok, a esposa sobreviveu, ainda que tenha sido internada em estado grave. Mas o marido... Imagine você estar tranquilo dentro de seu automóvel e, segundos depois, ter que se ver forçado a mudar não só de endereço, mas também ser desalojado do próprio corpo onde habitava desde sempre...

A Morte é foda! Na verdade, o problema não é ela em si, mas o que a rodeia. Acho que lhe dão muito cartaz. Os meios de comunicação deviam falar menos dela, daí, apesar de ela continuar existindo, seus danosos efeitos colaterais passariam a ser menores em nós, os viventes, os que continuamos carregando a cruz diária de nosso calvário. Calvário este que, se comparado com a morte, transforma-se logo no próprio Paraíso. E com pê maiúsculo! Sim, porque, por pior que esteja sendo nossa efêmera passagem por este planetinha desgovernado, sempre é melhor estar vivo que morto. Quer dizer, a não ser quando fulano já está verdadeiramente morto em vida. Daí, nesse caso, ir, digamos, morar na casa do Pai passa a ser umas merecidas férias. Ah, também há o caso dos suicidas, mas, entre estes, os que conseguiram obter êxito em sua empreitada não estão mais aqui pra discordar.

Lembro-me de, que quando era criança, já ouvia falar da Morte, ela já existia. Só que, naquele entrementes, ela me parecia muito distante, não passava de personagem secundária presa em um ou outro romance, ou mais, um planeta longínquo. E mesmo as pessoas que morriam a meu redor não me pareciam exatamente ter morrido. Não, em minha fértil imaginação de pimpolho, tinha a sensação de que tais ex-viventes apenas haviam tirado umas merecidas férias e viajado pra algum lugar bem bonito e exótico. Claro, na dúvida, eu não as invejava. Afinal, eu também vivia em férias permanentes num lugar mais maravilhoso ainda chamado Infância. Nesse lugar, nada era feio, nem as coisas feias. E até as lágrimas que caíam morriam no meio do rosto se alguém me chamava pra brincar. Mas aí o tempo passou, os pelos cresceram, e me mudei pra um país de nome feio chamado Adultidade...

Nos primeiros anos, ainda tudo ia bem. Toda mudança nos apresenta novidades: nova vizinhança, novo clima, novos sabores, novos desafios, e sua primeira fase é até bacaninha. Porém, depois, os dias vão virando meses, que vão virando anos, e começamos a temer que o trem que nos leva, de repente, possa vir a ter menos percurso a percorrer que o já percorrido. E o que nos faz crer nisso? O contato cada vez mais próximo com a Morte. Um dia, morre um parente. Noutro dia, morre um amigo. Vá lá, há aquele dia em que um desafeto também se desintegra, mas não deixa de ser um aviso você entrar em campo e ganhar por w.o., né não? Nesse momento, seu cérebro ativa um alerta chamado medo, e qualquer ocorrência a seu redor o deixa extremamente sensível aos sinais da... Morte.

Um avião cai lá na puta que pariu, pra lá de onde Judas esqueceu que um dia teve botas. E você passa a ter medo de tomar um avião. Um ônibus capota numa estrada esburacada da Indonésia. Você passa a temer viajar de ônibus. Um trem descarrila numa cidadezinha da China. Você passa a sentir um calafrio toda vez que as portas do metrô se fecham com você do lado de dentro. Um viaduto cai em Belo Horizonte. Você passa a acreditar que dá azar passar debaixo de um viaduto, como se o viaduto fosse uma escada. O tal cabo elétrico se rompe lá no bairro do Tatuapé e eletrocuta um casal dentro de um carro... Você já começa a andar pelas ruas olhando pra cima. João Ubaldo Ribeiro morre. Você passa a sentir pontadas agudas no coração!

Daí pra frente, os sinais dela passam a se aproximar cada vez mais. Um belo dia, você está com a cabeça na lua e, inadvertidamente, atravessa uma rua sem fazer o que a mamãe ensinou: olhar pros lados. Um segundo depois... BUM! Você é elevado do chão três metros, cai feito fruto maduro e percebe que não consegue se levantar. Tudo bem, ainda não foi dessa vez. Sua coxa inchou e você vai precisar andar de muletas durante um mês, mas depois desse período não vão restar sequelas. Sortudo! Quer dizer... Restará outro tipo de sequelas. O único probleminha será que o simples ato de atravessar uma rua, atividade que qualquer garoto de 8 anos é capaz de realizar com um pé nas costas, passará a representar pra você uma verdadeira tortura!

E os sinais continuam. Seu vô morre de câncer. Dois anos depois, sua vó morre de câncer. Mais algum tempo depois, seu pai, um camarada pra lá de saudável, vigoroso, forte como um Hércules... descobre que está com câncer. Tudo bem, é de próstata, e tá no começo. Normal, é da idade, diz o médico. O coroa vai escapar dessa. Mas e quanto a você? Daí, essa palavrinha que sempre lhe parecera sem o menor significado de repente se transforma num verdadeiro monstro, capaz de te causar pesadelos e suores que encharcam seu colchão. E eis que o garotão de outrora, da noite pro dia... ou melhor, quero dizer, pior, do dia pra noite, percebe que sabe perfeitamente o significado de uma palavrinha fora de moda que talvez ele só tenha lido há milhares de anos nalgum romance de Machado de Assis, quiçá Dostoiévski: hipocondríaco!

É, meus caros, é a vida. Quando não é a Morte. Claro, exagerei nas tintas, afinal, isso é uma crônica. E é melhor escrever uma que sentir uma dor crônica. E dizem que não há nada que o bom humor não possa resolver. E, na falta dele, o humor negro vem a calhar. Eu estou bem. Aliás, estamos todos bem, tirantes os que estão mal... e os que já foram dessa pra melhor. Melhor dizendo, dessa pra pior, pois, como dizia Vinicius sobre a vida, "Duas mesmo, que é bom, ninguém vai me dizer que tem sem provar muito bem provado, com certidão passada em cartório do céu, e assinada embaixo: Deus! E com firma reconhecida"! Mas, falando sério, na verdade, não é exatamente o medo da Morte. A gente já nasceu sabendo que ia morrer. E a maioria por aí já está até no lucro, né? O medo, pelo menos o meu, é o de passar sem deixar vestígios.


***

Nenhum comentário:

Postar um comentário