quarta-feira, 1 de março de 2017

Crônicas Desclassificadas: 184) A Maria que ninguém vê

Lá foi mais uma vez Maria pregar com suas duas companheiras como fazia em todas as manhãs de sábado já nem lembrava mais havia quanto tempo. Chovesse ou fizesse sol, lá estavam elas indo de casa em casa, batendo de porta em porta, versículos na ponta da língua afiada, embaixo do braço a velha Bíblia desbotada e já encardida de tantos sol e manuseio, distribuindo folhetos que continham a Palavra de Deus. Era, na maioria das vezes, um trabalho infrutífero, pois poucas pessoas abriam as portas – e os ouvidos – pra suas pregações. O mais comum era que cansassem as mãos de tanto bater palmas inutilmente, mas nem por isso iriam parar. Se o fizessem, o diabo teria levado sobre elas a melhor. Conseguindo salvar uma alma, já se davam por satisfeitas. No mais, o sacrifício da caminhada, cansando-lhes o corpo, fazia, em troca, bem ao espírito.

Mas um detalhe talvez imperceptível às demais fez daquele um sábado atípico pra Maria. Vindo em sua direção na calçada, notou que um rapaz a mirava fixamente e, ao passar por ela, piscou-lhe um olho. Maria sentiu naquele instante um rubor incendiar-lhe as faces e por pouco não desfaleceu. Não teve coragem de virar o pescoço, mas podia sentir a mirada do rapaz fixa em seu caminhar, em suas ancas, em seus glúteos, comendo-a com os olhos. As outras nem sequer perceberam sua descompostura, concentradas que estavam em sua missão. Maria, no entanto, perdeu o prumo, passou o tempo contando os minutos, mal vendo a hora de acabar aquele martírio e poder ver-se só em seu quarto, com os demônios que ora lhe vinham invadir os pensamentos. Numa visita, chegou a se equivocar num versículo, no que foi salva por uma colega que, contudo, repreendeu-a com um inquisitivo olhar.

Se fizéssemos uma avaliação sobre os dotes físicos de Maria, seria difícil chegar a alguma conclusão com facilidade. Seu maior talento era o de se camuflar. Quase não sobrava parte nenhuma de seu corpo à vista. Vestida sempre de maneira sóbria, com camisa de botão de manga comprida, saia até os calcanhares, sapatos de salto baixo, cabelo negro sempre preso em coque, rosto sem maquiagem escondido sob uns óculos de grossas lentes, ela era toda uma couraça. Sua alimentação era frugal, portanto possuía um corpo delgado, mas o vestuário lhe escondia as formas. Inclusive, o sutiã que usava lhe apertava os seios ao máximo, de modo que mesmo um olhar mais atento não saberia dizer se estes eram grandes ou pequenos. Os lábios finos, sem batom, pareciam mais um risco horizontal na metade inferior da face que algo que acendesse desejos. E os olhos negros tinham o costume mais de mirar o chão que fitar os poucos interlocutores.

Chegou em casa exausta e, após cumprimentar os pais monossilabicamente, correu pro quarto e se deixou cair na cama de bruços, escondendo a cabeça sob o travesseiro, como se com esse gesto afastasse os pensamentos que se apossavam dela. Debalde. Vencida, levantou-se meio que como um autômato, tomou de um pequeno espelho que jazia sobre a penteadeira e o pendurou no puxador do guarda-roupa. Em seguida, sentou-se na cama e, mirando-se, começou a desabotoar a camisa lentamente, botão a botão. Em seguida, tirou o sutiã e aparentemente pela primeira vez na vida observou com mais atenção seus seios. Eram firmes, roliços, bonitos, maiores do que se podia imaginar e adornados com dois pequenos e rosados bicos rodeados por uma pequena mancha circular da mesma cor. Soltou os cabelos, tirou os óculos e, como não conseguia se enxergar, aproximou-se e, tomando o espelho nas mãos, quase o deixou cair com o susto.

Quem a fitava era uma linda mulher de olhar altivo, nariz fino e lábios que não eram desprovidos de sensualidade. Sorriu pela primeira vez em muito tempo. Devolveu o espelho ao puxador, pôs os óculos novamente e, sem tirar os olhos da imagem refletida, deixou cair a saia, atirou longe os sapatos, em seguida desfez-se de uma meia-calça já um tanto desfiada e por último de uma calcinha que bem podia ter sido de sua vó. Viu uma vasta e selvagem penugem cobrindo-lhe o púbis e sentiu uma incontrolável excitação envolver todo o seu corpo, fazendo-o tremer com uma intensidade que por pouco as pernas não puderam conter. Atirou-se na cama e pela primeira vez na vida tentou, ainda que desajeitadamente, tomar contato mais íntimo com sua genitália. Porém, como certas coisas aprendemos com naturalidade, em poucos minutos já era senhora de seu prazer e por fim quase desmaiou arrebatada por um violento orgasmo.

Quedou-se ali paralisada por uma fração de eternidade, olhando pro teto como se contemplasse o céu, conseguindo aos poucos controlar a respiração e evitando assim que o coração lhe escapasse pela boca. Quando deu por si, notou a Bíblia caída no chão, aberta. Num reflexo, pôs-se de pé, pegou o livro sagrado, limpou-o e depositou-o na cabeceira da cama, mais temerosa que cuidadosamente. Numa das paredes, Cristo, de coração exposto, parecia recriminá-la de dentro de um quadro. Sentiu pela segunda vez no dia a face se afoguear. Entretanto, susteve o olhar no do rei dos judeus e durante alguns segundos manteve com ele um diálogo mudo no qual pedia explicações que aquele, com seus cândidos olhos, não lhe conseguia dar. Uma viscosa umidade que lhe escorria por entre as pernas atrapalhou sua concentração. Ainda desnuda, deitou-se na cama com as vergonhas expostas e dormiu como uma criança.

Nos dias seguintes, sua rotina não sofreu maiores alterações. Costureira, continuou recebendo em casa sua freguesia, à noite ia ao culto, dormia e acordava cedo, fazia suas orações... A única coisa que havia mudado realmente foi que seus banhos passaram a ser mais demorados. No sábado seguinte, encontrou novamente as duas companheiras de pregação. Estava animada, alegre; não errou nenhum versículo que citou e até incluiu outros que não costumavam fazer parte de seu repertório. Suas colegas se entreolharam tacitamente como que se perguntando se ela não teria visto o passarinho azul. O que não perceberam foi que Maria passou a estar mais atenta aos rapazes que cruzavam o caminho delas, talvez à procura daquele que foi o primeiro que conseguiu enxergá-la como realmente é através da couraça. E da próxima vez ela tinha quase certeza de que lhe iria retribuir a piscadela.


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