sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Ninguém me Conhece: 17) The visions of Vasco Debritto

O destino tem um senso de humor dos mais marotos. Quis ele que eu fosse apresentado por Sonekka a Vasco Debritto. Este, um defensor ferrenho da bossa nova; aquele, mais voltado ao pop e suas decorrências. E isso tudo se deu graças a esta ferramentinha mágica que é a Internet, que aproxima pessoas dos mais diversos lugares e estilos. No caso, a música também ajudou nessa aproximação, pois era o elemento em comum entre um brasuca dono de gravadora e compositor residente no Japão e um engenheiro e consultor em tecnologia e compositor residente em Santos trabalhando em Sampa. E que não se conheciam pessoalmente. Estava eu de viagem marcada pro Japão (a primeira de três) quando Sonekka me escreveu dizendo que havia um camarada lá a quem seria interessante conhecer. Resumindo a história, já em Chiba, cidade onde vivem os pais da Kana, entrei em contato com Vasco por telefone e fui por este convidado a visitá-lo na cidade praiana de Oiso, onde morava na época. O Japão tem uma rede ferroviária de dar inveja em terceiro-mundista, assim que, nem bem me acomodei no trem, já cheguei lá, depois de poucas horas de deslumbre visual.

1) No Mundo da Lua (Vasco Debritto - Léo Nogueira)

E por que Oiso? É fácil de explicar. Vasco é o mais radical dos cariocas: é carioca por adoção. Interiorano de Santa Cruz do Rio Pardo, ainda jovem, seduzido pela bossa nova acabou se mudando pra Cidade Maravilhosa, onde (além de ter travado contato com muita gente importante do meio musical) estudou e viveu durante anos e de onde mantém um sotaque hoje quase híbrido, visto que, cidadão do mundo, viveu ainda um tempo em São Paulo e Paris, fora as tantas cidades que conheceu. No Japão, vivendo em Tóquio, cidade cosmopolita que lembra uma São Paulo futurista, teve saudades do Rio e, nem bem fez um pé de meia, mudou-se pra Oiso, onde tinha, além do mar, a montanha.

Mas a história de Vasco é de dar inveja aos mais intrépidos viajores. Daria um bom filme. Muito jovem, sofrendo apuros financeiros e às vésperas de ser pai, foi convidado a fazer uma temporada de seis meses no Japão. Ficou na dúvida, mas a jovem mãe de sua futura filha, numa atitude nobre, incentivou-o a ir (ele veria a filha só seis meses depois). Levantou uma grana com amigos e parentes e foi, com a cara e a coragem. Alguns casamentos depois (persegue o recorde de Vinicius), após muitas idas e vindas, ao perceber que sua carreira teria mais possibilidade de êxito, davido ao som que fazia, no Japão que no Brasil, por fim tomou a decisão de ir de vez morar na terra de Kurosawa.

Foram mais de duas décadas. Vasco aprendeu a falar japonês (mochiron, ne?); fez muitos shows, aproveitando a proximidade apresentou-se também em muitos países da Europa; teve a ousadia de montar uma gravadora sua em solo nipônico, a Koala Records, inteiramente dedicada à música brasileira, que chegou a lançar muitos nomes de peso (e outros tantos menos conhecidos, arrojado investimento que o fez ganhar poucos ienes e perder muitos); gravou dois discos lá (já havia gravado um LP no Brasil!); e, se aqui ninguém o conhece, no Japão seus discos venderam mais que os de Chico Buarque, por exemplo.

Mas Vasco não estava feliz. Acostumado aol sol, à boêmia e às mulheres bronzeadas da terrinha do Pão de Açúcar, inspirações óbvias de sua obra, sem ter muitos amigos com quem pudesse abrir o coração e sentindo que os versos que escrevia estavam um tanto deslocados de sua realidade, não poucas vezes pensou em voltar. Porém, a cada nova tentativa, deparava-se com um Brasil mais embrutecido e surdo às sofisticadas harmonias e à poesia nostálgica que compunha. Seus shows eram incompreendidos, seus discos, que chegara a lançar aqui, não vendiam, e, apesar de conseguir um certo espaço na mídia (mais por sua história que por sua música, fique-se claro), não via a menor condição de poder viver de música aqui como o fazia lá.

2) Invenção (Vasco Debritto)

Assim o encontramos (eu e Kana) naquela tarde em Oiso. Vasco nos abriu casa e coração; apresentou-nos sua simpática mulher (a mais recente ex), uma japonesa que não falava uma palavra em português; empanturrou-nos com um belo bacalhau regado a cerveja japonesa; presenteou-nos seus três CDs e uma agradável tarde repleta da mais fina prosa; e saímos de lá tendo conquistado mais um amigo. De volta ao Brasil, mais uma vez graças à Internet, recebi dele uma melodia, letrei-a, fui dormir e, quando acordei e me conectei, lá estava uma gravação de nossa primeira parceria, a querida Guarida. Acho relevante postar aqui a letra, pois foi a tradução em versos do que me pareceu a história de Vasco com o Brasil, travestida em canção de amor. Ei-la: 

Se eu tivesse o toque de Midas/ Te faria, de ouro, a canção/ E talvez encontrasse guarida/ Nos ouvidos do seu coração./ Minha voz rouca fere a garganta/ Com as unhas da minha ilusão/ Minha paz pouca se ataranta/ Pois a ponte entre nós é um vão./ Vento leva a canção que murmuro/ O meu verso flutua no ar/ Só não sabe galgar esse muro/ Que te impede de me escutar./ Sou o eco que não reverbera/ Sou o verbo sem conjugação/ O outono a chorar primaveras/ Que não viram chegar o verão./ Minhas cordas vocais são algemas/ Agarradas ao seu calcanhar/ Meu amor é um pobre poema/ Que Deus se esqueceu de acabar./ Vento leva a canção que murmuro/ O meu verso flutua no ar/ Só não sabe galgar esse muro/ Que te impede de me escutar.

Outras parcerias vieram. O solitário Vasco viu em mim, apesar de um abismo geracional de quase vinte anos, um ouvido acolhedor (dois, aliás), uma fonte de revigoração poética e, principalmente, um amigo quase mais velho, pois, segundo suas próprias palavras, na maior parte do tempo pareço mais velho que ele. Foram muitas chamadas internacionais nos mais estapafúrdios fusos. Muitas vezes eu nem o conseguia entender dado o teor alcoólico que causava interferência na ligação. Certa tarde (aqui), um Vasco no mais fino estado de pileque… Interrompo pra acrescentar que, dentre tudo o que aprendeu com os japoneses, uma coisa se sobressai: ser bom de copo. Em suas viagens ao Brasil, quando o encontrava, não poucas vezes saímos do bar direto pra padaria, com o dia raiando. E era um custo fazê-lo crer que eram 8h da manhã e não da noite. Pois bem, onde eu estava? Ah, sim, na tarde em questão, Vasco me disse que havia passado horas ouvindo os dois CDs da Kana, que estava encantado com ela e que lhe queria produzir um CD. Como palavra de bêbado só vale o tempo que dura o porre, pedi-lhe que me ligasse no dia seguinte, sóbrio, que conversaríamos. E não é que ele ligou? E tive uma grata surpresa. A ele a regra acima não se aplica!

Repertório fechado, detalhes acertados, e eis que aterrissa em Cumbica mister Vasco Debritto, ou melhor, Basuko san. De quebra, apresentei-lhe Vicente Barreto e ele decidiu produzir-lhe também um CD (tratarei de Vicente em outra oportunidade). As gravações se deram com pompa e circunstância, num estúdio-pousada em Campinas. Só que, no meio do processo, o inesperado deu o ar da graça. Depois de tantos anos de profissionalismo (e quem conhece um pouco o Japão sabe que lá o buraco é mais embaixo), eis que Vasco, à beira de uma estafa, desabou no colo de um novo (e brasileiro) amor. De brinde, uns vinte anos mais jovem que este “rodado” executivo. Pra não entrar em maiores detalhes, antecipo apenas que Vasco “saiu de circulação” por dois anos e uns meses. O que a música não conseguiu, o amor logrou: Vasco voltou a morar no Brasil. Ao que tudo indica, está de volta, rejuvenescido e com uma experiência a mais em seu curriculum. E, segundo sua palavra de profissional, finalmente Imigrante, o disco de Kana sob sua batuta, invadirá as (boas) lojas de todo o Brasil ainda este ano. O longo parto por fim termina.

Mas estou aqui pra tratar do amigo e compositor Vasco Debritto. Amigo leal e compositor digno de respeito pela consistência da obra. Quem sabe ouvir facilmente perceberá a autenticidade, um tanto ofuscada pelo jobiniano timbre boêmio que causa errôneas comparações. Além disso, também o letrista, que andava um tanto cansado e repetitivo, encontrou sobrevida após o período de recesso. Também contribuiu pra que lhe voltasse a verve a inédita experiência de terceirizar melodias, surgindo assim parcerias com letristas do primeiro time, como Celso Viáfora, Alexandre Lemos e Zé Edu Camargo. Parcerias essas que farão parte de seu novo CD, em fase de finalização.

3) A Bailarina (Vasco Debritto)

Vasco é um camarada polêmico, turrão, que não foge a uma boa briga e, por isso, coleciona desafetos; a exemplo de Fernando Pessoa, também tem feito vergonhas financeiras; é dado a períodos de laconismo e chegado a um far niente; mas é um poeta, talvez no sentido mais desvairado do termo; uma alma sensível que sofre e alucina, sabe chorar e gargalhar; ama as mulheres, as madrugadas, o veneno com filtro e o cão engarrafado (não nessa ordem); aprendeu a endurecer sem perder a ternura; e, sobretudo, é alguém cuja vivência já ensinou a dar voltas e mais voltas por cima. Um homem de moral... E de visão. Ou, de visions. Posso ser um ingênuo, mas é um cara em quem eu apostaria. Afinal, a última aposta a perdemos todos, não? 

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Vasco também está (pero no mucho) no Caiubi.

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2 comentários:

  1. Oba Leo
    Obrigado por aparecer no nosso papo poetico. Bacana teu jornalismo. Volte sempre.

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  2. Valeu, Eduardo. As indicações da Lúcia são sempre bem-vindas. Volte semprevocê também.

    Abração do
    Léo.

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